quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Descontinuidades do Conhecimento

Para Michel Foucault, Uma epistémê é uma configuração epistemológica, uma disposição do espaço do saber que define quais objetos são dados ao pensamento e em que condições. São, segundo ele, as condições de possibilidade para que algo seja pensado. Um pensamento que se proponha estudar esse tipo de formação não se resumirá a expor a sequência temporal de ideias ou debates, mas de perceber qual o terreno que possibilitou essas ideias e debates.O livro As Palavras e as Coisas analisa essas construções da racionalidade, em um projeto descrito pelo autor como arqueológico. Uma definição geral desse projeto é encontrada no seguinte trecho:
Tal análise, como se vê, não compete à história das ideias ou das ciências: é antes um estudo que se esforça por encontrar a partir de que foram possíveis conhecimentos e teorias; segundo qual espaço de ordem se constitui o saber; na base de qual a priori histórico e no elemento de qual positividade puderam aparecer ideias, constituir-se ciências, refletir-se experiências em filosofias, formar-se racionalidades, para talvez se desarticularem e logo desvanecerem. (Foucault, As Palavras e as Coisas, São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. XVIII)
A distinção entre uma “história das ideias ou das ciências” e uma arqueologia é de imensa relevância e emerge em muitos outros pontos do livro. O que Foucault quer estabelecer são diferentes níveis de pesquisa: as opiniões, os debates, os desenvolvimentos teóricos — tais elementos se dão na superfície. Abaixo disso, sendo fundamento e lugar onde isso ocorre, está o campo epistemológico que é o objeto da arqueologia. A constatação superficial será constantemente evocada por Foucault, para em seguida opor a ela a análise do fundamento. 

Por exemplo, a respeito de mudanças na epistémê do século XVII ao XVIII, ele afirma: “no nível de uma  história das opiniões, tudo isso apareceria sem dúvida como uma imbricação de influências, em que seria necessário sem dúvida fazer aparecer a parte individual que cabe a Hobbes, Berkeley, Leibniz, Condillac”. Logo após, ressalta os conceitos que regem tal configuração, como eles abrem o espaço em que pode existir esses debates, “não como temas sucessivos engendrando-se ou repelindo-se uns aos outros, mas como uma rede única de necessidades. E foi ela que tornou possíveis essas individualidades a que chamamos Hobbes ou Berkeley ou Hume ou Condillac” (idem, p.87).

Argumentação semelhante surge com mais detalhe quanto à disputa de ideias no âmbito da análise de riquezas, também no campo epistemológico do XVIII:
"(...) se o fato de pertencer a um grupo social pode sempre explicar que este ou aquele tenha escolhido um sistema de pensamento de preferência a outro, a condição para que esse sistema tenha sido pensado não reside jamais na existência desse grupo. É preciso distinguir com cuidado duas formas e dois níveis de estudos. Um seria a pesquisa de opiniões para saber quem, no século XVIII, foi fisiocrata e quem foi antifisiocrata; quais os interesses em jogo; quais os pontos e os argumentos da polêmica; como se desenrolou a luta pelo poder. O outro, sem levar em conta personagens nem sua história, consiste em definir as condições a partir das quais foi possível pensar, em formas coerentes e simultâneas, o saber “fisiocrático e o saber “utilitarista”. A primeira análise seria pertinente a uma doxologia. A arqueologia só pode reconhecer e praticar a segunda." (ibidem, p. 278)
Há aí vários pontos relevantes. A arqueologia não se propõe a estudar por que os indivíduos de um ou outro grupo se mantiveram ligados a determinada forma de pensamento. Não está avaliando que interesses criaram o debate entre lados opostos. Pesquisa, sim, o que tornou possíveis as formas de pensamento, mesmo antagônicas, no âmbito de uma cultura. 

Ainda um terceiro exemplo tornará essa separação ainda mais clara. No início do capítulo sobre a História Natural, Foucault descreve os modos pelos quais “as histórias das idéias ou das ciências” entendem as mudanças nas ciências da vida na passagem do XVII ao XVIII. Recorrem elas ao aperfeiçoamento da observação (pelos avanços técnicos ou teóricos), ao prestígio das ciências físicas e à transposição do seu modelo, ao interesse pela agricultura e ao fracasso do mecanicismo cartesiano. Porém, antes das mudanças na epistémê, não havia surgido o objeto mesmo da História Natural ou a História Natural como tal; a natureza era pensada de outro modo, definido pelo campo epistemológico. Ela se dava como objeto em um sentido no XVI e em outro sentido no XVIII. É sobre esse objeto feito necessário que a técnica poderá se aplicar. “Infelizmente, as coisas não se passam com essa simplicidade”, afirma o filósofo (ibidem, p.175).

Retomemos agora o primeiro trecho citado. Nele, é visível uma característica essencial das epistémês: cada disposição a partir da qual os saberes são possíveis é, pois, suscetível de desarticulação (os seus elementos já não tem a mesma relação mútua) e desvanecimento (seus objetos próprios ou segmentos críticos deixam de existir). Uma racionalidade como que se condensa em um ponto do tempo e se desfaz. A imagem usada por Foucault para indicar essa decomposição de determinada formação é a da erosão:
"O descontínuo — o fato de que em alguns anos, por vezes, uma cultura deixa de pensar como fizera até então e se põe a pensar outra coisa e de outro modo — dá acesso, sem dúvida, a uma erosão que vem de fora, a esse espaço que para o pensamento, está do outro lado, mas onde, contudo, ele não cessou de pensar desde a origem." (ibidem, p. 69)
Um além do pensamento corrói as estruturas próprias de cada formação. O modo pelo qual isso ocorre é apenas sinalizado no decorrer de As Palavras e as Coisas
"(...) o problema que se formula é o das relações do pensamento com a cultura: como sucede que um pensamento tenha um lugar no espaço do mundo, que aí encontre como que uma origem, e que não cesse, aqui e ali, de começar sempre e de novo? Mas talvez não seja ainda o momento de formular o problema; é preciso provavelmente esperar que a arqueologia do pensamento esteja mais assegurada, tenha mais bem assumido a medida daquilo que ela pode descrever direta e positivamente (...) Bastará, pois, por ora, acolher essas descontinuidades na ordem empírica, ao mesmo tempo evidente e obscura, em que se dão." (ibidem, p. 69)
A arqueologia descreve a sucessão dessas descontinuidades. Jürgen Habermas, no texto “Aporias de uma teoria do poder”, do livro O Discurso Filosófico da Modernidade – Doze Lições (São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp.375-76) aponta  uma deficiência desse momento foucaultiano. Se a análise arqueológica pode encontrar os princípios que regem as condições de possibilidade de tal discurso, entretanto, não pode explicar o que rege a disposição desses princípios: “Com efeito, não existem regras capazes de regular sua própria aplicação”. Nas obras posteriores, esse problema terá um novo direcionamento, segundo Habermas: “Foucault contorna essa dificuldade abandonando a autonomia das formas do saber em favor de sua fusão em tecnologias do poder e subordinando a arqueologia do saber a uma genealogia que explica a formação do saber a partir das práticas de poder”.
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